Eu tento, eu realmente tento. Mas daí me aparece esse vídeo fantástico Evolução versus Deus (esse texto é um comentário sobre o vídeo, infelizmente pra entender o texto é relevante assistir). Eu acho inacreditável que em pleno século XXI a gente ainda tenha que explicar conceitos básicos de evolução. Eu tenho essa pequena esperança de que as pessoas tenham algum apreço pelo método científico e não joguem ele no lixo desse jeito. Também espero que jornalistas editem vídeos de maneira a não distorcer o que os entrevistados falam: quase ninguém consegue terminar uma frase ou raciocínio nesse vídeo, esse tipo de “corte” é claramente intencional e pior, corta muita informação importante. Nisso fica uma dica a todos que um dia derem esse tipo de entrevista: façam uma gravação própria por mais caseira que seja.
O vídeo sugere que não existam evidências da evolução. Fósseis, bactérias, DNA, hereditariedade, observação das semelhanças entre espécies, mamilos em machos, úteros em sapos machos, a existência de organismos mais e menos complexos (que claramente formam uma linha evolucionária); nada disso pode ser considerado evidência para eles. Evidência é só se você ver, tocar e experimentar. Evidência é coca-cola. Como historiadora eu não tenho nenhuma evidência dessas de comer que me garanta que a Revolução Francesa existiu. Eu acredito no que os livros dizem, e os escritores acreditam em outros livros e em documentos antigos. Por isso eu chego a conclusão de que a Revolução Francesa não existiu? Não. Porque não bastassem essas “falsas evidências” eu também observo que se a grande maioria dos países ocidentais vivem em repúblicas democráticas, se nós temos conceitos políticos de esquerda e direita, e se nós somos Iluministas (nem todos) a Revolução Francesa deve ter existido. Então pensa um minutinho. Se existem evidências da evolução (as que eu já citei antes) se você pode observar mudanças em espécies em um tempo relativamente curto, se você acredita em DNA, a evolução deve ser verdadeira. Não é difícil chegar a essa conclusão.
A evolução é observável. Um exemplo claro de evolução artificial (que é a que eu mais domino, mesmo sendo leiga, e que é observável em menor tempo) é a diminuição do tamanho das presas de marfim dos elefantes. Como eles são caçados por conta do marfim, os que tem presas menores tem maiores chances de serem poupados e de procriar. O resultado é que os elefantes das novas gerações nascem com presas menores. O mais apto sobrevive. Isso é hereditariedade, isso é evolução. Isso também pode ser observado em bactérias, em insetos, etc. O processo de evolução natural pode ser observado com mais facilidade em lugares de ecossistema isolado (como as Ilhas Canárias, onde Darwin formulou a teoria). Pelo seu isolamento, as espécies que se desenvolveram lá tem características bastante particulares. Outro ponto importante é que a fisiologia dos animais mostra claramente uma linha evolucionária: o sistema circulatório é menos complexo em peixes, e vai aumentando de complexidade nessa ordem: répteis, aves e mamíferos. Todos os outros sistemas da nossa fisiologia também seguem essa ordem. Isso é uma evidência observável da evolução.
Nem todos nós temos um conhecimento profundo em todas as áreas da ciência. O vídeo tem uma intenção clara de fazer com que os ateus pareçam idiotas, meio burros, arrogantes e que tem fé em algo que não podem provar. Tem PhD entrevistados (cujas falas são sempre cortadas) e graduandos. Estudantes de várias áreas. Esses ficam um pouco aturdidos com as perguntas e não sabem responder, e o entrevistador age como se a discussão portanto estivesse encerrada. Eu não sou médica, não tenho conhecimento médico e se alguém na rua me entrevistar dessa maneira eu vou ficar aturdida da mesma forma. Se alguém quiser me provar que o teorema de Pitágoras é inverdade e fizer isso de um jeito que eu não compreenda, eu vou ficar sem saber o que falar, porque o meu conhecimento dessa área é extremamente limitado. Mas eu acredito no teorema de Pitágoras e acredito nos médicos porque eu conheço o método que produziu esse conhecimento: o método científico, que demanda observação, experimentação, comprovação e tentativas de refutar esse conhecimento. Eu posso não conhecer os detalhes do processo que culminou nesse conhecimento, mas eu conheço o caminho, e conheço a eficácia desse caminho. Eu confio em médicos, matemáticos, físicos, historiadores, psicólogos não porque eu fiz uma pesquisa profunda sobre esses assuntos, mas porque o processo que gerou esses conhecimentos é confiável. O fato de que as pessoas não entendam todo o processo não é um invalidador da teoria, e principalmente não é a mesma coisa que crer numa religião.
Acreditar em uma religião ou na ciência não são a mesma coisa. Pensar assim é um erro básico. Quando eu era pequena meu pai me ensinou: se você pode provar que alguma coisa existe não é fé (meu pai é ateu). Gravem isso: Se você pode provar não é fé; a fé só existe se não existem evidências. A base e o suporte da fé são a própria fé, ela não precisa de evidências. Ciência é o conhecimento produzido através do estudo das evidências. Se você tem um teoria científica e existem evidências irrefutáveis contrárias à sua teoria ela se desmancha. Entendeu a diferença? Fé = Fé x Ciência = Evidências. É por isso que acreditar na ciência não é equivalente a acreditar na fé. Na minha experiência pessoal de vida posso dizer que: quanto mais conhecimento você tem sobre o natural mais você tem que abrir mão da razão pra ter fé. É por isso que nos maiores níveis de escolaridade, existem mais ateus. I’m sorry, but it’s true.
“Você não pode criar uma rosa então o design inteligente é verdadeiro”. Eu não entendo a lógica atrás desse argumento. Alguém? O fato de eu não poder criar uma rosa (eles esquecem que existem vacinas sintéticas, carne sintética e couro sintético, entre outras coisas provavelmente) só prova que eu não tenho acesso à uma tecnologia avançada o suficiente. Não prova nem que o design inteligente existe nem que não. É irrelevante. Dentro desse mesmo “argumento” um estudante diz: “Não se pode criar uma rosa do nada, isso é ciência básica”, o vídeo parece tentar ironizar a fala. Aula de ciências de 6ª série: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Ele tem razão: é ciência básica, quem não entendeu foi o entrevistador.
“Por que o design inteligente não é ensinado nas escolas?”. Por que não é ciência! E o pior de tudo, é que sim, tem muito professor que ensina doutrina religiosa disfarçada de ciência nas escolas sim. O Dawkins, citado completamente sem pudor no vídeo, escreveu o Boing 747 Definitivo, que explica que se é tão improvável que a vida tenha surgido “do nada” (o que não é verdade) é muito mais improvável que um organismo extremamente mais complexo e inteligente (sem contar onipresente, onisciente e onipotente) tenha surgido do nada, ou sempre tenha existido.
Órgãos vestigiais são basicamente, órgãos que perderam sua função à medida em que os organismos evoluem: o apêndice é o mais famoso (se bem que tem quem diga que ele sirva para preservar a flora intestinal em casos de desinteira). Esses órgãos que não tem função no organismo são uma prova da evolução. Em algum momento eles foram funcionais, mas eles não eram mais úteis em determinado ambiente e a evolução foi os atrofiando (o meu marido lindão, não tem os sisos de cima, evolução minha gente!). Homens tem mamilos, úteros em sapos machos, etc.
“Ateus famosos não eram ateus de verdade”. Muito irrelevante citar gente famosa que seja ateu, e boa parte dessas declarações precisam de contexto ou de confirmação. Carl Sagan era agnóstico (ó céus, meu mundo foi por água abaixo): a priori qualquer cientista ateu é agnóstico; já que o agnóstico não aceita nem nega a possibilidade de Deus existir. É uma questão de probabilidades: tem agnósticos que acham mais provável deus existir, tem agnósticos que acham de improbabilidade gigantesca. Se existir uma prova cabal da existência de algum deus (e pode não ser o cristão ai, ai) a sua existência será reconhecida. Sobre esse argumento também seria importante, verificar que nem sempre a palavra deus e ser superior tem a mesma conotação: panteísmo não é incomum entre cientistas e já foi muito mais usual, além é claro da possibilidade de ser também pura figura de linguagem.
Relacionar o ateísmo do Hemingway com o seu suicídio é de puro mal gosto. Descaracteriza uma doença grave que é a depressão e trata o assunto com leviandade.
“Os ateus são desonestos porque não acreditam em absolutos morais”. Você acredita numa religião homofóbica, escravista, machista, assassina, ciumenta e vem falar de moralidade? Gente! Já falei sobre isso aqui: moral e ética são diferentes: um comportamento ético é centrado no bem estar do outro. O estupro é errado não porque a moral é absoluta, mas porque fere o outro. Não é um absoluto moral, é um comportamento ético:
Calma, me explico: a moral é transitória, cultural, inflexível e SEMPRE religiosa. Em geral as pessoas não tem muito claro a diferença entre moralidade e ética: a moralidade muda de sociedade para sociedade e é moldada principalmente pelos princípios religiosos vigentes; já a ética é uma reflexão continua sobre basicamente tudo, levando em consideração os prós e contras e o conhecimento produzido. A moral tem seu foco no individuo, nas suas crenças, nos seus valores. O foco da ética é o outro. É uma mudança gigantesca de perspectiva. Um exemplo claro e atual é a maneira como a sociedade encara a homossexualidade, se o Império Romano não tivesse se tornado cristão a homossexualidade seria encarada com normalidade, porque essa era a prática romana (e grega). O preconceito judeu, através do cristianismo, f* com tudo. É só por isso que você acha estranho, nojento, errado. Isso é moral. Considerar que existem evidências de homossexualidade em todos os animais, e as circunstâncias de sofrimento que o preconceito causa é ética. Deu pra entender a diferença?
Se Hitler fosse o exemplo moral da nossa sociedade e fosse pró estupro, seria moralmente certo estuprar (e na verdade estupro é uma prática comum em tempos de guerra, e na bíblia também). Eticamente, já é outra história.
That’s all folks!
P.S.: Pra deixar claro o que me irritou nesse vídeo: é um conhecimento superficial para tentar desmoralizar a evolução. Todo mundo tem liberdade de acreditar no que quiser, mas não distorça os fatos, as falas das pessoas, isso é má-fé.